segunda-feira, junho 27, 2011

A belga – Luís Fernando Veríssimo


A belga – Luís Fernando Veríssimo
Ele seria publicado na Bélgica, e a tradutora vinha ao Brasil para olhar dentro da sua alma de escritor
O escritor ficou surpreso quando soube que seu livro seria traduzido na Bélgica, e preocupadíssimo quando soube que a tradutora do livro iria procurá-lo. Como, procurá-lo? Ela viria ao Brasil, era isso? Quando? Por quê? A partir do dia em que se confirmou que a tradutora iria procurá-lo, o escritor não falou em outra coisa. Dizia aos amigos que não conseguia dormir, pensando na chegada da belga.
– O que essa mulher quer comigo?
E por que vir ao Brasil? Se tinha alguma dúvida sobre o livro, por que não usar o e-mail? Ela usara o e-mail para anunciar que viria. Por que não usar para dizer o que queria?
Aos poucos, o escritor foi ficando com raiva. Da tradutora belga, da editora belga, do seu próprio livro. Pra que traduzir aquilo? Era um romancezinho de nada. No Brasil ninguém lera. E ninguém conhecia a tal editora. Por que não o deixavam em paz?
Os amigos argumentavam que era uma boa, ser traduzido. Ele passaria a ser conhecido internacionalmente.
– Eu não quero ser conhecido! E que língua se falava na Bélgica, afinal? – Francês.
– Espera aí, francês é no sul. No norte é uma espécie de holandês.
Aquilo só aumentou a irritação do escritor. Ele não sabia nem em que língua seria traduzido. Francês ou uma espécie de holandês? Os e-mails da tradutora eram em inglês. Ela se referira ao livro como “your marvelous book”. O que seu livro tinha de maravilhoso?
Ela não o entendera, era isso. Ela o interpretara erradamente. Vira símbolos onde não havia símbolos. Mensagens cifradas onde não havia nenhuma. E vinha para descobrir o que ele “realmente” queria dizer com seu livro de nada.
Era isso. Olhos nos seus olhos.
A belga vinha para olhar dentro da sua alma. E ele não queria ninguém olhando dentro da sua alma.
O escritor pensou em mandar um e-mail dizendo: “Epidemia de malária. Estou de cama, sem poder receber ninguém. Não venha”. Mas desistiu. E resolveu apelar para o seu amigo Romualdo. O Romualdo era dentista e, ao contrário dele, tinha pinta de intelectual.
Usava cachecol no inverno e no verão. Fumava cachimbo. Receberia a belga como se fosse o escritor. Desnudaria a sua alma para a belga. E concordaria com todas as suas interpretações.
Romualdo topou. Só pediu que o escritor fizesse um rápido resumo do livro, que ele não lera. “Viu só?” disse o escritor. “Ninguém leu”. Romualdo e a belga encontraram-se durante uma semana. No apartamento dele, onde a belga estranhou a ausência de livros. ‘Não leio nada”, explicou Romualdo, no pouco inglês que o cachimbo deixava passar “para não ser mal influenciado”.
Quando voltou para casa, a belga mandou um e-mail dizendo que adquirira uma perspectiva completamente nova do livro depois de conversar com o autor, principalmente das alusões dentárias, que ela não pegara na primeira leitura. Até hoje o Romualdo se recusa a contar ao escritor o que disse para a tradutora, e o escritor só saberá o resultado da conversa dos dois quando ler a tradução belga. Se não for numa espécie de holandês, claro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Skoob

BBC Brasil Atualidades

Visitantes

free counters